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O silêncio na criação ou toda palavra precisa dormir e sonhar #diáriodeescrita

Uma das coisas mais difíceis de incorporar, para mim, é a importância do silêncio no processo de escrita. Saber é uma coisa. Entender, ter certeza, mas depois se ver tendo esquecido por algum tempo (cada vez menos tempo, é verdade) que toda história precisa repousar no silêncio, que toda palavra precisa dormir e sonhar, tem sido uma das espirais da minha vida desde 2016.


E foi a que mais me provocou essa semana.


Muita coisa na minha relação com o silêncio já mudou. Antes eu me pegava pensando horas e horas na mesma história, no mesmo personagem ou na mesma frase, eu pegava a história pelas mãos da mente e de jeito nenhum largava. Tinha a sensação de que se soltasse a ideia por um segundo que fosse, ela se perderia no oceano de outras ideias, cacos de vidro, restos de livros e fantasmas, imagina? Viver como se o único jeito fosse segurar forte o suficiente para que a ideia não fuja, mas não tanto que lhe tirasse a vida.


Foi esse o assunto das últimas páginas do caderno de cima.

Em termos práticos, eu estava quase sempre com metade de mim escrevendo, nos cafés da manhã e nos velórios, nas viagens de ônibus e nas caminhadas pelo parque, eu vivia pela metade e achava que com isso fazia todo o possível para não interromper essa história de amor, hoje em dia entendo, abusiva, com aquilo que eu escrevia. Estar sempre segurando as mãos de uma ideia me fazia irritável, eu não conseguia estar presente e ficava nervosa quando as pessoas me chamavam pra vida, quando a vida me chamava pra vida, quando alguém me chamava, afinal, eu só tinha metade de mim para andar por aí. A outra metade estava presa prendendo uma história, uma linguagem, uma ideia.


O que eu ia fazer? Como eu poderia soltar a mão de uma ideia se ela me prometia tudo, se ela me dava sentido para a vida?


Eu também não sabia, mas esse segurar a ideia com todas as forças a impedia de seguir seu próprio caminho e virar outra coisa, maior ou menor, aquilo que ela fosse, eu achava que segurava a ideia pela mão, mas eu a segurava pelo pescoço, eu estrangulava a ideia para garantir que continuaríamos juntas, que eu não ficaria sozinha, que eu não iria enfrentar com toda a minha atenção a vida, a perigosa vida.


Essa prática foi me deixando mais nervosa, mais instável, foi se tornando insustentável, foi quando eu precisei largar uma história, questão de vida ou morte, ou você larga essa história, ou você perde a mão que a segura, o corpo todo, a sanidade. Não foi uma frase, um personagem ou uma ideia o que eu larguei, mas um romance inteiro. Foi como colocar um bebê na correnteza, não porque eu confiava na correnteza, mas porque não havia mais vida em terra.


No exato momento em que larguei esse romance, eu tive certeza de que o mundo havia acabado.


Experimento de autorretrato para ver se o medo transparece na foto.

Imagina a surpresa que eu tive quando o romance voltou! Voltou mais maduro, mais robusto, como uma pessoa que a gente ama vai viajar e a gente sente falta, mas quando ela volta é a mesma e outra, imensa, o romance não morreu na correnteza, pelo contrário, eu achei que o mantinha vivo estrangulando-o, quando na verdade o impedia de seguir seu próprio caminho dentro de mim, um caminho que eu não podia prever ou controlar, um caminho para partes de mim que eu ainda não conhecia (o romance saberia mais de mim do que eu própria, a partir dessa viagem), um caminho longe dos olhos da minha consciência.


Fazia parte do processo dele que eu não pensasse nele, que eu o soltasse, que eu o desse como perdido (ou que estivesse disposta a perdê-lo). Faz parte do processo criativo banhar um romance com o sol do meu silêncio, largar a mão de todas as palavras e estar disposta a permanecer no segundo antes de uma palavra surgir, no espaço entre uma palavra e outra, um segundo antes do Big Bang houve silêncio, silêncio, Silêncio.


Para criar é preciso olhá-lo nos olhos e não é nada fácil, o Silêncio não faz você se sentir bem vindo, ele não está nem aí para isso. Não à toa podemos passar boa parte da vida nos distraindo. Quantas séries eu já assisti só para substituir o falatório da minha mente por outro falatório? Quantos podcasts? Quantas vezes liguei para uma amiga não porque queria falar algo ou ouvir algo, mas porque não podia suportar o vazio sem palavras, o buraco negro da mente, o Silêncio?


Hoje em dia eu sei que o Silêncio pode ser uma experiência inclusive prazerosa, cheia de luminosidade, mas ainda possuo reflexos, hábitos, medos, caminhos mentais que me fazem evitar o Silêncio sem nem perceber e é como voltar no tempo, mas não por muito tempo. Hoje em dia tenho meus rituais, tenho outros caminhos mentais e corporais que me levam de volta ao meu centro, ao lugar onde meu instinto poderá me dizer se é hora de entregar um projeto para o mistério, se é hora de fazer silêncio, portanto, ou se eu estou dando desculpas para não enfrentar algo nele.


Terça-feira, quando me vi mais uma vez insegura diante do chamado do silêncio, fiz o meu processo corpóreo e depois fui escrever no meu diário. Veio como um raio: fazer algo que a gente ama é tão contra as histórias que sustentam a nossa sociedade que eu estava com medo de dar um passo para trás e abandonar o meu projeto atual, como se um ou dois dias sem estrangulá-lo pelo pescoço fossem o suficientes para eu ter abandonado o livro, a escrita, meu projeto de vida, a própria vida. Eu tive medo de largar esse projeto e morrer.


A diferença entre o episódio do romance abandonado na correnteza e o que me aconteceu semana passada é que na história de 2016 eu demorei quase um ano para aceitar a inteligência própria do livro que eu escrevia e não tentar controlá-lo a todo instante. Nessa semana, o tempo transcorrido entre o “será que é hora de fazer silêncio ou eu estou tentando fugir?” e o “é hora de fazer silêncio, preciso confiar na inteligência própria desse projeto, no tempo dele” foi de algumas horas.


É o que eu chamo de revolução.


PS: esse tema apareceu também na participação que fiz no episódio dessa semana do podcast Sem papas, clique aqui para conferir.


Página do livro "Criatividade espontânea" de Tenzin Wangyal Rinpoche.

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