Hoje estou em alguma outra dimensão, cuidando do que acontece na gente quando acontece algo como uma menina de 10 anos ter seu corpo tomado (de tantas maneiras).
É preciso cuidar das meninas de 10 anos, lutar por elas, inclusive pelas que vivem em nós e também pelas que não vivem, pela sensação de que passamos por isso com ela, pela culpa de não termos passado com ela por isso, de termos estado vivendo nossas vidas enquanto ela e outras meninas e mulheres têm seus corpos tomados. Hoje, o melhor que posso fazer com o que sobrou de mim é pouco mais do que apenas isso - não olhar para o outro lado.
Quantos anos você tinha quando descobriu que seu corpo não era seu? Foi antes ou depois dos 10?
Não foi culpa dele, sabe? Do seu corpo, eu digo. Eu também demorei para entender isso, com tudo o que a gente vive e tenta entender com as histórias que contam pra gente - a do corpo que se oferecia mesmo quieto, imóvel, dormindo, morto, a do corpo incontrolável, traiçoeiro, em que é perigoso ter qualquer desejo.
Nenhuma história sobre o meu corpo era uma história de amor e a falta de histórias de amor torna o amor quase impossível. Por isso eu escrevi esse livro, o Meu corpo ainda quente (a ser publicado em breve pela Editora Nós). Resolvi trazer um trechinho, o começo, porque me curou dar nomes para isso. Espero que te abrace um pouquinho.
Minha Mãe não acredita na morte. Eu também não acreditava.
Era melhor nem falar sobre os Corpos de Vermelha na frente dela, “aqui só morre mesmo quem não presta”, ela ia dizer. Também não adiantava perguntar “por que ninguém esconde essa gente toda embaixo da terra, junto com as raízes das plantas e com os livros?”, “porque a gente não fez nada de errado”, a Mãe ia dizer, o rosto duro de pedra, “aqui em Vermelha só tem medo quem não presta”.
Só quem não presta então eu corria atrás do meu Corpo, um bicho selvagem e louco, ele corria e eu corria atrás, em volta e em cima das coisas, crianças espantando o pó, fazendo o vento, rindo feito cachorros, um tentando morar no outro, eu e meu Corpo e minha Mãe gritando para eu parar com isso, “ou você vai cair”, cair? Eu sinto o frio na barriga, será que é isso? Eu estou caindo? Do meu próprio Corpo?
Só morre quem não presta então eu continuo correndo dos gritos e da Mãe vindo atrás com os cachorros da rua junto latindo, ela me pega no meio da corrida eu sou um saco de roupas em queda livre, ela me chacoalha eu sou coberta e pó, as mãos dela geladas de detergente e raiva, “você fica por aí como se esse bicho fosse seu, depois não vem com choro pro meu lado”, eu olho chacoalhada para a Mãe, “esse Corpo
não é meu?”
Eu olho para as mãos que andava carregando por aí, “mãe?”, mãos que cuidei como se fossem minhas, “no mundo inteiro é assim, filha, mulher nenhuma tem o próprio Corpo”.
Quando comecei a escrever, minha questão era: o que eu faço com essa sensação - uma certeza - de que vivo em um corpo emprestado? Quando terminei de escrever o livro, não tinha dúvida de que é meu o corpo em que vivo. Não porque me deram, mas porque o tomei pra mim. Com palavras e com vida, tomei meu corpo de volta. Ocupei seus espaços, seu imaginário. Em dias como hoje, choro, fico em luto por tudo o que morre, mas não mais duvido, não mais acho que devo estar exagerando (mais uma história que sempre nos contam).
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