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Mulher é esfaqueada; investigadores não medem esforços para descobrir o que ela fez para merecer

Há pouco tempo, um homem esfaqueou uma mulher e foi absolvido de forma unânime pelo júri com a alegação de que o fez “em legítima defesa da honra” – ele suspeitou de que ela o estava traindo.


Na costura de ideias do Meu corpo ainda quente, um dos retalhos era esse vislumbre de um romance policial em que ao invés de buscarem o culpado, os detetives trabalhavam com todos os seus recursos para descobrir o que a vítima tinha feito para merecer aquilo. Quando a ideia chegou, parecia um exagero poético, a materialização de algo que vive na sombra da nossa sociedade, a “culpa da vítima”.


Quando encontro nas notícias o caso citado, não consigo conter a proliferação de imagens em meu Corpo: vejo de longe o quadro com taxinhas e linhas vermelhas, fotografias e infográficos, formando juntos um daqueles quadros que estamos acostumados a ver em séries policiais americanas. Uma foto da mulher ao centro, o que já é prova o bastante.

Em volta, os indícios do crime que ela cometeu, o ataque de honra. Xeroxes do diário do marido. Uma foto de um guardanapo respingado de lágrimas, a lágrima sendo o sangue do corpo da honra, os respingos desenhando um mapa, a prova de que ele estava cabisbaixo, portanto triste, com um leve desvio que aponta que ele estava com a mão no queixo, portanto pensativo, o que já indica (respiro fundo)

Nem os diários nem as lágrimas merecem ser postos nessa cena – mas o que mais eu faria com essa raiva? Pensei em ficar quieta, mas é difícil ficar quieta diante do que te ameaça, diante do que pensei por tantas e tantas páginas, enquanto escrevia sobre esse assunto, enquanto vivo. Sei o quanto é enraizado em nossa cultura, o quanto define a noção de quem somos e do que podemos fazer, o quanto torna a rebeldia o único caminho possível para uma mulher que se quer livre.


no mundo inteiro é assim, filha, mulher nenhuma tem o próprio Corpo.

trecho do romance Meu corpo ainda quente.

Uma cidade em que as mulheres não têm o próprio corpo, o cenário do Meu corpo ainda quente, é uma distopia, mas é também uma utopia – de sentido. Um lugar onde as mulheres não são chamadas de loucas quando dizem que não se sentem donas dos próprios corpos, porque isso, essa dor, não lhes é questionada, pelo contrário. Essa certeza é uma utopia em relação à situação que vivemos – em que nossos corpos são menos importantes do que um conceito abstrato de “honra”, mas se dissermos isso em voz alta, se dissermos qualquer coisa, devemos estar “exagerando”.


No fundo eu não entendia que para sobreviver em Vermelha uma mulher precisa saber ter apenas a metade de seu próprio tamanho. Concordar. Falar baixo. Ocupar pouco espaço. Menos ainda. Em Vermelha mulher precisa ser planta pequena e rasteira e silenciosa, decorativa, eu achava que ia crescer e virar outra coisa, Bicho, Pedra, Casa, “o Corpo é traiçoeiro”, você me fala, “sem amarrar até o pé de uma chinesa fica grande”.

trecho do romance Meu corpo ainda quente.


A real é que nos querem dando vida ou mortas. Nós, que vivemos nossos corpos, atrapalhamos sua ampla objetificação. Estamos no caminho, construindo barricadas dentro, atrapalhando o trânsito sobre nossos corpos. Atrapalhando um “rei apaixonado” de viver pra sempre com nosso Corpo vazio (por morte ou ausência de vida). Atrapalhamos. Atrapalhemos. Entremos no caminho.


Não podemos deixar que nos esvaziem para que tenham para eles os nossos Corpos vazios.



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