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Dobradinha

Esses dias eu estava voltando pra casa e uma mulher, nunca vou esquecer o rosto dela, os cabelos compridos, ela me pediu dinheiro para comer e eu, com pressa, fazendo conta, e eu, que geralmente dou um jeito, arranjo um lanche, eu apressada, concreta, paulista, falei que não tinha. Eu nunca vou esquecer a mão dela pelos cabelos ondulados, compridos, eu nunca vou esquecer o rosto dela aflito, segurando a raiva com os dentes, o nó desfeito das suas pernas, eu nunca vou esquecer o que ela me respondeu.


Eu continuei andando adiante, talvez tenha olhado de relance, apenas para guardar na memória, caramba, eu não ia conseguir voltar e oferecer um prato de comida, como eu já tinha feito outras vezes com medo de que a fome se vingue, depois do que ela me disse eu não ia conseguir voltar e dizer pensei melhor, vamos naquele boteco que eu te pago uma dobradinha e um suco e talvez fritas, porque eu não consegui voltar do que ela me disse, até hoje eu não voltei.


Melhoras. Assim, ela disse assim: melhoras. Eu disse que não tinha dinheiro e ela me desejou melhoras. A mão entrando pelos cabelos ondulados, os dedos uvalados, os olhos tristes eu só entendi depois, com a memória, os pés nos chinelos, na rua, o diabo da fome pegando a coitada pelos cabelos, esfregando na calçada, a boca dela ondulada, crespa, a boca inquieta, seca, mas pronta para uma bofetada. Melhoras. Melhoras. Melhoras, é o que eu diria, foi o que ela disse, se me negassem um prato de comida.


Melhoras, ela disse como quem se vinga. Ela, o personagem implícito de qualquer um dos meus contos, a mulher sendo fodida, não ficou em silêncio, isso não. Ela falou com a fome: foi poetisa. Ela sentada me botou contra a parede, eu indo embora com a certeza de ter sido tomada pela garganta, melhoras, minha senhora, ela disse e me tomou pela garganta, não pela minha, pela dela, ela me tomou pela garganta dela me esganou pelas costas calou minha boca ela disse melhoras minha senhora melhoras – ela disse mas a fome não foi embora.


Tudo que eu queria era voltar, oferecer a dobradinha de carne, perguntar se ela gosta de farofa, eu queria voltar e não chorar no banho, eu queria voltar e esquecer e sentar com ela, feito criança, e aprender com ela a palavra vingança. Eu queria dar risada daquilo, eu queria ter virado e dado risada e voltado, rindo e falando, que engraçado você dizer isso, melhoras, que engraçado porque eu sou exatamente o tipo de pessoa que diz melhoras para quem me recusa ajuda, engraçado, eu queria ter dito, eu não sou quem eu fui com você, eu queria ter dito e dado risada. Mas a fome não é engraçada.


A fome é uma mulher cavando sua carne. A fome é uma mulher dizendo melhoras.


Eu queria ter voltado e oferecido o prato, eu queria ter rido do melhoras, você sempre fala isso para as pessoas, eu ia perguntar, mas continuei andando, entalada, eu continuei dobrando as ruas até ficar cansada. A garganta seca, as sacolas, eu nem lembro o que carregava, as sacolas deixaram meus dedos roxos, cheguei em casa sem sentir as pernas, os dedos dos pés, não eram as unhas que estavam encravadas, as sacolas, eu nem sei onde coloquei as sacolas.


Eu queria ter voltado, engraçado, mas ao invés disso fui escrever o conto que faltava pra ela, minha personagem implícita. Engraçado, porque eu geralmente escrevo para me vingar e eu não queria me vingar dela, eu só queria voltar do melhoras, eu só queria ter conseguido voltar, olhar para trás, caminhar até ela, meu Deus ela estava faminta, eu só queria que ela não tivesse fome, a verdade é que eu não queria sofrer com a fome dela, eu só queria que ela não existisse, a fome, eu só queria que a fome não existisse, nem ela.

Engraçado porque eu geralmente escrevo para me vingar, e talvez seja isso mesmo, uma vingança, uma vingança por ela ter me dito melhoras, uma vingança por ela ter fome, eu estava tão feliz naquele dia, carregando minha sacola eu nem lembro o que tinha nela, não era comida, eu estava tão feliz e aquela mulher aquela maldita mulher cabelos ondulados pernas compridas aquela maldita mendiga pedindo comida, ela não era uma mendiga, meu Deus, não era, quem eu estou tentando enganar?


Era eu a mulher sentada na calçada, pedindo comida, passando pelo olhar daquela gente, perdida. Eu estava com fome e pensei pedir comida não faz mal, não faz mal, já ajudei tanta gente na rua, não faz mal, eu pensei, tudo bem essa fome, eu pensei, é só agir naturalmente, a fome dá um jeito e bota ronco no silêncio da gente, eu sei, só umas moedinhas, as pessoas continuam andando é isso o que elas fazem, por favor, minha senhora, um real já ajuda, casal, calma, eu pensei, é só fingir que está tudo bem, eu pensei, qualquer trocado e eu gasto tudo em cigarro, eu nem pensei.


Eu podia ter ficado quieta, sentada, eu podia continuar fingindo que estava ali esperando alguém, naquela esquina, não sei quantos dias olhando para os lados, decorando as promoções da drogaria, a mesma roupa, não sei quantos dias tentando não resmungar, eu sempre tive medo do que os mendigos resmungam, eu não queria resmungar e descobrir por minha própria boca, eu não queria resmungar e descobrir e ser descoberta, às vezes abrir a boca é como abrir os olhos, outro jeito de a gente esbarrar nos outros. Por isso pedia quieta, muda nascendo pra dentro, envergonhada da minha própria fome, era só o que me faltava.


Era eu a mulher mantendo a pose e pensando, caralho, a vida tem um senso de humor do caralho. Era eu a mulher sendo fodida, a personagem implícita, rezando está tudo bem isso logo passa está tudo bem depois escrevo um conto, boto essa gente toda em desgraça. Era eu engolindo a raiva, uma coceira na cara, vontade louca de dar uma bofetada, de quebrar tudo, uma vontade louca, sôfrega, eu estava sem forças, mas não era eu tentando ficar escondida no meu pedido insistente, tentando não ouvir os olhares dizendo perguntando isso lá é coisa de gente. Por isso respondi.


A branquela, vinte e poucos anos, não sei, umas maçãs do rosto para comer com canela, ela veio me dizendo que não tinha dinheiro, porra, não tem dinheiro? Desejo melhoras pra senhora. A outra pediu desculpas, o salto pontuando as frases, eu respondi não foi nada, eu que peço desculpas de atrapalhar seu caminho pra casa. Hoje não vai dar, o cara disse, terminando o sorvete, amanhã eu volto, então, senhor, quer deixar hora marcada? Estou sem dinheiro trocado, disseram e eu respondi que pena, doutor, hoje não estou aceitando fiado.


Pena que não dá para comer cara de tacho e é só o que eu tenho para pôr na goela e é uma tristeza, eu sei, mas mesmo assim não engulo, e mesmo assim eu falo, e mesmo assim os ratos, e a fome procura, as pessoas não raspam direito o feijão da marmita, a fome vasculha o lixo, as pessoas, os bichos, tem gente que toma o sorvete e larga a casquinha, eu parada e a fome encontra a ponta secreta de uma coxinha, a fome se mexe, arisca, qualquer cheiro, resto, naco, qualquer papel engordurado, merda de cavalo, qualquer coisa no taco, raspa no copo, no talo, no osso, de repente estou lembrando das frutas pelo caroço.


É normal, não é normal as coisas darem errado e a gente querer gastar tudo em cigarro? Não é assim que se escreve um clássico? Não em um quarto, condomínio fechado, não se escreve um clássico em um Starbucks lotado. Nenhum verso sobrevive a um banheiro pago. As palavras crescem no meio da rua, em sofás desconhecidos, no corredor de um prédio antigo, as palavras vêm quando você nem imagina, sendo fodido no meio da rua, numa kitnet sem cortina, pedindo, pedindo comida, e torcendo pra nenhum conhecido dobrar a esquina.


A mulher com as sacolas, os dedos roxos feito salsichas, as amigas escondidas na conversa, cremes com cheirinho de fruta, sozinho o moleque finge que não escuta, em bando ele grita olha a puta. Poeira do espaço, eu lembro, todos nós somos poeiras do espaço, eu não consigo mais esquecer, poeira, do espaço. É assim, só pode ser assim, tem que ser assim que se escreve um clássico: de quatro, com a vida te fodendo que nem louca e você apoiada em um só braço.


Tem que ser assim que se escreve um clássico e de repente aparece um amigo e graças a Deus um sofá e vai ficar suave, arroz e salsicha sempre tem, vai ficar suave, vem curtir com a gente, vem, mas o caroço largado da fruta é o pomo da minha goela, o fiapo é frango enroscado na lata de lixo feita de panela, a casquinha arrancada do fundo, a casquinha abrindo um machucado, sangrando, a topografia do alumínio amassado, rasgando. O gosto metal do lixo vive agora em cada garfo. Disso a gente não volta. Depois vou dizer que é mentira, imagina, inventei tudo isso, claro que é só um conto, pouco importa, vou rir e dizer rir e dizer:



Eu sou só uma mulher que diz melhoras.

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