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Como seria um método feminista de criação? Um experimento forma-conteúdo-pensamento-bruxaria

Como escritora, sou apaixonada pelo exato momento em que o conteúdo e a forma são a mesma coisa, um mesmo acontecimento no texto. Sinto que, nesses momentos, também somos forma e conteúdo, não porque não sejamos assim todo o tempo, mas porque nos dissociamos de nós mesmas, de nossos corpos, e esquecemos.


Um texto em que coincidam o corpo e o espírito do texto nos ensina a coincidir com nós mesmas? É o que sinto no meu corpo. Por conta disso, há uma pergunta que ronda minha escolhas criativas (não que eu pense nela, mas quando paro e observo meus processos, vejo que ela sempre está comigo):

como expressar a mudança que eu quero no mundo não apenas em termos de conteúdo, mas de forma-conteúdo-corpo-espírito? Como não apenas falar sobre um assunto, mas fazê-lo possuir o corpo do texto e, em consequência, o corpo da leitora?

Eu posso elaborar uma, duas, mil respostas para isso, mas a verdade é que respondo essa pergunta mesmo a cada vez que crio. O Meu corpo ainda quente, por exemplo, é um experimento, uma resposta criativa para as questões: como incorporar o feminismo no texto para além do tema, palavras-chave, conceitos? Além do texto criado, no que isso transformaria a própria criação, o processo, a bruxaria?

Já comentei com vocês que tentei escrever de outras maneiras, mas o Meu corpo ainda quente se impôs também como método, me disse: de outro jeito você não vai conseguir escrever. Faz algumas semanas, durante um dos encontros do grupo de estudos @ahistoriaeoutra, entendi que era essa a resposta das minhas perguntas e que ela chegou rápido, muito rápido, eu apenas não a havia enxergado.

Primeiro eu vivi esse processo, depois fui entendê-lo – ou apenas: narrá-lo. Contando sobre ele eu entendi que sua base, no corpo, era o equilíbrio yin/yang, cérebro direito/cérebro esquerdo, ativo/receptivo, sem o qual minha escrita simplesmente travava, mas não porque qualquer escrita travaria, mas sim toda escrita inspirada, porque a inspiração necessita de uma integração corpo/mente/espírito para encontrar caminho no corpo e acontecer.

E esse equilíbrio é dificultado pela própria cultura, vivi isso no meu corpo atravessado de histórias e crenças patriarcais que cercam nossas possibilidades de criar e de viver (em especial de experimentar viver e criar como um só movimento), valorizando o que é associado* ao masculino – a ação, a técnica, a escrita mental – e rindo do que é associado ao feminino – ao transformar a receptividade (fundamento da empatia) em passividade, a energia erótica da inspiração em “esperar a sorte de ser atingida por um raio”, a escrita corpórea em “escrita emocional demais”.


Na mitologia geral sobre criação e, portanto, em nossa cultura brasileira contemporânea pseudoocidental, o controle – arte mental das trevas - é valorizado em detrimento da intuição. Assim temos, em nosso inconsciente coletivo, histórias e conceitos que nos reforçam quando optamos por incentivar a dominação interna do yin pelo yang. Por outro lado, nos sentimos levemente loucas quando dentro de nós se expressa essa capacidade psicofísica humana instintiva básica chamada intuição.

Já reparou que mesmo quando temos certeza da capacidade de nossa intuição, sempre que a tocamos nos sentimos loucas? É porque a sensação de loucura é um vocabulário do corpo avisando que você está saindo da zona de conceitos culturalmente aceitos. Eu precisei mudar o significado desse vocábulo do corpo para poder criar com ele, ao invés de vê-lo como um limite. Isso se mostrou fundamental na escrita do Meu corpo ainda quente, que acontece todo na fronteira com esse Outro Lugar de possibilidades criativas, intuitivas, eróticas do Corpo.


Foi preciso, para criar uma experiência, um manifesto poético, e não apenas um manifesto, criar-me outra no mundo – o que nesse texto andei chamando de método.


*Ser humano é ter essas duas energias / bandas do cérebro. Viver apenas uma delas é limitar as possibilidades sobre o que é ser humano em muitos níveis.

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