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A literatura como uma velha que eles acharam que estava louca #lereescrevercom Olga Tokarczuk

Atualizado: 13 de set de 2020

Uma leitura amorosa e interesseira de aprender a escrever com Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk (com spoilers)


Já faz uns 6 meses que li Sobre os ossos dos mortos, mas o vídeo da Tamy (do maravilhoso Litera Tamy) me inspirou a como ela falar sobre o livro a partir de uma relação amorosa – pela literatura, pela natureza e pela astrologia. Vou contar para vocês um pouco do que encontrei quando li e um pouco do que fui buscar como escritora, como estudante de escrita criativa, e como oraculista.


Não vou tentar disfarçar o fato de que, como muitos dos grandes livros, este me deu a impressão de falar diretamente comigo. Sei que esse é um efeito do texto aberto, do tipo que coloca o leitor como um personagem ativo da trama. Mas saber não é nada perto do prazer de ser cúmplice de uma boa narrativa, então vou seguir fingindo que somos melhores amigos, o livro e eu.


Para mim, Sobre os ossos dos mortos é uma ameaça aos que subestimam as mulheres idosas, a natureza, a astrologia. Uma ameaça e um manual de guerrilha (já disse que não vou fazer questão de fingir não ver o que quis ver ali).

Isso é encarnado na história de uma mulher idosa que não faz muita questão de disfarçar aquilo que a configuraria como suspeita de uma série de crimes, já que os olhos da cidade não a veem como capaz, não por sua moralidade, mas por sua incapacidade. Ela não sabe o que fala, é ingênua, coitada, uma pobre solitária, louca, astrologia? É melhor nem prestar atenção no que ela diz.


Um manual de guerrilha para minorias subestimadas: o que você pode fazer quando pensam que você é incapaz de fazer qualquer coisa?


Do que a cultura popular me ensinou sobre seriais killers, sei que eles tendem a voltar à cena do crime e têm especial prazer por estarem envolvidos com a investigação. Em uma das linhas de costura dessa história, a senhora Ducheiko encena justamente esses passos clássicos, inclusive nos rastros que deixa, na mensagem que monta, na morte transformada em linguagem.


Supõem sua fraqueza física, sua ingenuidade, supõem que sua fala simbólica é delirante, um processo que se configura na interpretação de signos que em outras mãos seriam suspeitos, mas que são desconsiderados junto com ela, silenciados junto com ela. O que me faz pensar no caminho oposto, o dos objetos simples que são vistos como “prova” nas mãos de pessoas vistas pela justiça como ameaçadoras – penso em Rafael Braga, por exemplo.


Ah, sim, os signos. O processo de atribuição de significado é um dos caminhos de leitura que escolhi percorrer nesse livro, por meus interesses como astróloga, por meus interesses como escritora. Na história, acabamos por descobrir que a astrologia não é trazida como oráculo que dirá o futuro, mas como linguagem cifrada da natureza, uma que constitui intimidade, cumplicidade até.


Subestimam a velha senhora astróloga como subestimam a natureza e sua inteligência simbólica. Esquecem que somos bichos famintos por significado, esquecem que somos bichos, partes dessa mesma natureza. Que somos sua consciência e sua imaginação.


Como escritora, voltei ao texto para entender a articulação das camadas interpretativas, do universo invisível do texto, do pensamento ficcional incorporado. Ao invés de argumentar que a astrologia é uma linguagem, Olga Tokarczuk coloca uma personagem que fala com sangue essa linguagem em muitos momentos considerada delirante, inofensiva.


Ao invés de falar sobre como estigmatizam e silenciam as mulheres idosas, a autora coloca esse silenciamento na base de um crime, o que é uma espécie de avesso irônico do paradoxo clássico em que uma pessoa não pode atestar sua própria sanidade por já ter sido considerada louca. Aqui temos alguém que, por já ter sido considerada louca, incapaz, delirante, tem seus gestos silenciados, tornados incapazes de serem provas – objetos testemunhos - dos crimes que provocaram.


Não é esse o lugar atual da literatura? O de uma velha louca, "ingênua", que em silêncio executa seu crime?


Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental, fala que todos os romances são romances policiais. Uns nos fazem questionar “quem matou?” ou “por que matou?”, entre outras variações, e outros nos fazem questionar “sobre o que esse romance está falando?” Desse ponto de vista, Sobre os ossos dos mortos é um romance duplamente investigativo. Quando a gente descobre “quem matou”, descobre também do que o livro está falando e descobre um pouco de quem a gente é.


Os estigmas sobre mulheres idosas e sobre relações simbólicas e radicais com a natureza estão no centro da questão posta ao leitor pela narrativa investigativa: de quem você suspeitou e de quem você não suspeitou revela algumas curvas do labirinto da sua subjetividade.


Você suspeitou da senhora Ducheiko? E por que não?


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